Por que não criarmos nossos filhos dentro do Candomblé?
Enquanto muitas religiões já possuem uma tradição consolidada de iniciação e inserção infantil — seja através do batismo, da escola dominical ou do contato cotidiano com ritos e preceitos — o Candomblé, por muito tempo, viu suas crianças crescerem à margem dos terreiros ou sendo introduzidas tardiamente em suas tradições. No entanto, é preciso resgatar a força de um princípio ancestral: religião também é herança. E herança não se adia.
Infância e religião: uma construção de pertencimento
Criança não nasce vazia: ela nasce dentro de um mundo que já existe. Se somos do axé, se vivemos e respiramos ancestralidade, por que não permitir que nossas crianças cresçam dentro do sagrado que nos forma?
Desde cedo, outras crenças ensinam seus filhos a frequentar cultos, decorar versículos, participar de eventos religiosos, vestir roupas cerimoniais e reproduzir seus valores. No Candomblé, fazemos parte de uma religião que valoriza o corpo, o canto, o toque, o tempo e o silêncio — tudo isso é riquíssimo para o desenvolvimento afetivo e cultural de uma criança.
A criança como continuidade do axé
No Candomblé, a criança não é apenas um futuro, mas já é uma extensão do axé no presente. No ventre, ela já recebe rezas e banhos de ervas. Após o nascimento, pode passar por rituais de proteção e confirmação espiritual. São atos que conectam a criança aos Òrìṣà e protegem sua jornada.
É também através da criança que um terreiro se renova. O saber oral, os cânticos, os toques, os nomes, as folhas, os gestos — tudo isso se mantém vivo na medida em que é compartilhado. Não há legado se não houver quem continue.
A presença da criança no terreiro
Historicamente, as crianças sempre estiveram no terreiro. Em muitos casos, eram filhas de santo, netas de mães e pais de santo, moradoras das casas de axé, educadas na tradição desde cedo. A colonização e o racismo religioso, porém, criaram a ideia de que as crianças deveriam ser “protegidas” do Candomblé, como se fosse algo sujo, obscuro, demoníaco.
Precisamos resgatar o contrário: o Candomblé é uma fonte de proteção, amor, educação e identidade para nossas crianças.
- No terreiro, a criança aprende a se relacionar com o tempo e o silêncio.
- Aprende a respeitar os mais velhos e a importância das hierarquias.
- Aprende a cuidar do corpo, da comida, da natureza e da palavra.
- Aprende a dançar, cantar, escutar e observar.
Tudo isso é educação ancestral.
E a iniciação? Criança pode ser iniciada?
Sim. Desde que respeitados os rituais, os cuidados e a individualidade de cada criança, a iniciação pode ocorrer em idade precoce, sobretudo quando há confirmação de caminho espiritual e aval do oráculo (jogo de búzios). Isso não significa impor: significa reconhecer que aquela criança já traz consigo um caminho e pode, sim, ser preparada com suavidade e zelo.
Não se trata de exigir dela o que exigimos de um adulto. Crianças iniciadas têm seu tempo próprio, sua forma de aprender, sua maneira de estar no axé — e tudo isso deve ser respeitado.
Educar no axé é resistir
Colocar nossas crianças dentro da religião é também uma forma de resistência ao apagamento, à intolerância religiosa, ao racismo estrutural. É uma forma de garantir que o Candomblé tenha continuidade, não só como rito, mas como cosmovisão, como ética, como projeto de vida.
Educar uma criança no Candomblé é dizer a ela, desde cedo:
“Você tem um lugar. Você tem uma pertencimento. Você tem uma ancestralidade.”
Artigo Por: Hipólito Cunha
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